Era uma vez...


Era uma vez uma menina que vivia com seus pais e irmãos numa casa modesta.
Tinham uma vida simples, muitas vezes passavam por dificuldades.
Ela e seus irmãos estudavam, sua mãe cuidava da casa e seu pai trabalhava...como ele não ganhava muito, sua mãe costurava para fora, para reforçar o orçamento.
Seu pai não era um homem de grandes demonstrações de afeto, quando estava em casa vivia a maior parte do tempo calado, vendo televisão, parecia oco de sentimentos profundos. Não ajudava nos afazeres domésticos, não ajudava no cuidado com os filhos, não brincava com ela e seus irmãos.
Sua mãe não, apesar das dificuldades que vivia, da vida corrida, do trabalho duro, sempre estava cantando, arrumava tempo para brincar com os filhos, acompanhar a lição e nunca, nunca reclamava de nada na frente deles.
Apesar de tudo, ela nunca viu seus pais brigando, nem mesmo discutindo e como toda criança, na sua cabeça tudo corria bem, era feliz ao seu modo. Até que um dia tudo mudou...
Viu uma movimentação diferente em casa, conversas com portas fechadas e o veridito que sua mãe deu: seu pai iria embora, não moraria mais com eles! Ela tinha 10 anos nessa época...
Não entendeu muito bem o que aconteceu, na verdade nem quis muito entender.
A vontade de toda criança é que seus pais fiquem casados por toda vida, é ter uma família normal, mas dentro do seu universo a ausência do pai em casa não fez grande diferença, já que mesmo presente, ele era ausente.

A vida continuou difícil, sua mãe trabalhando mais para sustentar a casa, já que seu pai pouco colaborava. Nesse tempo o pai fazia visitas esporádicas, eles nunca sabiam aonde ele morava, ele não contava, fugia do assunto, dizia estar sozinho, tudo muito obscuro e mal explicado.
Ela foi crescendo e tomando consciência das coisas: o porquê das ausências do pai no período em que morava com eles, o sofrimento da mãe (que sempre fez questão de sofrer sozinha e esconder isso dos filhos), a separação, a luta da mãe para que não faltasse o essencial em casa, o esforço da mãe para ser mãe e pai ao mesmo tempo.
A menina, que já não era mais tão menina assim, foi acumulando mágoas...por não ter tido um pai presente, por ter perdido a chance de ter uma família normal, por ter uma vida difícil, pelo pai ter traído sua família, por ver sua mãe sofrer e não merecer.
Mesmo com tudo isso, sua mãe fazia questão que respeitassem e amassem seu pai. O pai não merecia...aos olhos dos filhos, nunca fez nada para ser amado por eles...era ausente, egoísta, orgulhoso, indiferente com o sofrimento deles e chegou até mesmo a debochar de certas perguntas que foram feitas, em uma ou outra discussão com um de seus irmãos.
Os irmãos não falavam entre eles sobre esse assunto, mas faziam o que a mãe queria, por amor e respeito a ela.

Um dia, quando a menina estava com 19 anos, descobriram que o pai, durante todos esses anos de separação, ainda mentia e foi a gota d'água.
Toda mágoa que ela e seus irmãos acumularam por todos aqueles anos, veio a tona.
Depois de uma conversa, o pai foi embora de vez!
Nunca mais ela o viu...ele nunca os procurou, nem telefonou, nem mandou carta, nada! Nunca pediu desculpas, nunca tentou ver os filhos, reconhecer o erro e tentar novamente...o orgulho ou talvez medo sempre o impediu.
Sem o pai e com ela e os irmãos crescendo e trabalhando, a vida melhorou, a mãe já não precisava trabalhar tanto, o dinheiro não faltava, não ficavam mais devendo...a figura paterna a cada dia tornava-se apenas isso, uma figura.
Os irmãos foram casando e a menina virou mulher.
Casou...e não entrou com o pai na igreja, nem mesmo o convidou para o casamento.

Os anos iam passando, eles viviam felizes, cada um com sua família, a mãe morando com ela e vivendo feliz rodeada pelos netos, filhos dos seus irmãos.
A mágoa que antes era tão latente na menina, hoje apenas era uma ferida...ela lembrava do pai às vezes, mas não sentia falta, não sentia amor, não sentia raiva, não sentia nada.
Um dia ela soube que seria mãe, a vida ficou ainda mais feliz. A maternidade transforma a mulher, faz brotar sentimentos que antes eram só imagináveis.
Enquanto seu filho crescia no ventre, perguntas teimavam em vir a sua cabeça: era correto deixar seu filho crescer sem conhecer o avô? Ela tinha feito as escolhas para sua vida, mas era certo privar o filho, fazer essa escolha por ele?
O pai nunca tinha sido mandado embora, tinha sumido porque quis, nunca mais a tinha procurado, nunca tinha deixado seu orgulho de lado e tentado uma reaproximação.
Mesmo assim, mesmo sabendo que o pai era o errado, começou a entender que alimentar uma mágoa só fazia mal a ela.
Conversou com seu marido, com sua mãe (que nunca impediu que nenhum filho procurasse o pai se quisesse) e quando seu filho nasceu, mandou chamar seu pai para conhecer o neto.
Ela sabia que um de seus irmãos tinha contato com ele.
O pai veio, emocionado, envergonhado e depois de tantos anos, viu a filha e conheceu o neto.
Ela sentiu paz!
Não sentiu felicidade por rever o pai, nem mágoa, nem ódio, nada...depois 13 anos sem vê-lo, era como se fosse um velho conhecido, um vizinho que não via há muito tempo.
Tratou-o bem, conversaram amenidades, não falaram do passado, ele trouxe um presente para a ela e para o neto.
Pegou-o olhando as fotos nos porta-retratos espalhados pela sala...ela de noiva, grávida, com os irmãos...viu-o ficar emocionado e com o semblante triste.
Por conta dessa aproximação, foi natural também que ele se reaproximasse dos outros filhos e conhecesse os outros netos.
A vida segue agora seu curso...eles se falam por telefone algumas vezes, ele vai na casa dela de vez em quando, quando tem festas dos netos é convidado, mas não há intimidade.
A mulher, que ainda se considera uma menina, está em paz e feliz por ter dado a oportunidade ao filho dele mesmo escolher se quer o avô por perto ou não. Sabe que nunca terá pelo pai o sentimento de filha, sabe que nunca haverá um resgate de todos esses anos de ausência, de falta de relacionamento, de falta de amor.
Pra ela a história deles começou no dia que seu filho conheceu o avô, o que ficou pra trás...ficou! Ela aprendeu que de uma história triste, pode-se também tirar grandes lições e é isso que vai ensinar ao filho.
Vai ensinar também que:

* todo mundo erra e todos tem o direito de uma oportunidade para consertar o erro.
* alimentar uma mágoa, uma raiva, um ódio não faz bem, pois isso um dia se volta contra você de alguma maneira.
* por mais que você ache que seus pais são heróis, eles também erram e podem decepcioná-lo, mas isso não quer dizer que não o ame.
* não importa quem errou...mesmo que você saiba que o errado foi a outra pessoa, se sentir necessidade de dar o primeiro passo, dê...não deixe que o orgulho o impeça.
*ame muito seu pai, dê valor a cada momento que ele passa a seu lado, a cada brincadeira que ele faz, pois só quem não teve isso, sabe a falta que faz.
Se ela conseguir fazer com que seu filho aprenda isso, saberá que sua experiência, o jeito difícil com que ela aprendeu tudo isso, valeu a pena.

Essa história pode ser minha, sua, do João, da Maria, pode ser de qualquer pessoa.
Pode ser que ela sirva de ajuda para alguém que está passando por algo parecido, que esteja separado de uma pessoa querida por muitos anos, acumulando mágoa e tristeza.
Quem sabe não é a hora de dar o primeiro passo...o perdão dá uma sensação de liberdade!
Quando aprendemos a perdoar, todo o resto fica mais fácil.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

7 Comments:

Anônimo said...

Puxa vida...post forte, profundo, triste e ao mesmo tempo emocionante...me fez pensar em tantas coisas que já poderia ter resolvido e por orgulho ainda não fiz.
Beijos...

Anônimo said...

Perdoar nunca é fácil, mas como vc disse, a mágoa traz muito mais sofrimento para quem sente.

Anônimo said...

Guria, agora tu foi fundo!
Nossa, que assunto difícil...não sei se tenho essa generosidade, talvez eu ainda não seja um espírito elevado e que tem muito a aprender nessa vida.
Sei que tudo que tu escreveu é o certo, talvez seja hora de rever posições...lendo parece que tudo fica mais fácil.

Anônimo said...

Caraca!!!!!!
Nem sei direito o que falar...acho que a gente sempre tem alguma mágoa escondida...é tão difícil admitirmos que somos incapazes de perdoar.
Belo post...

Anônimo said...

Edna, emocionante essa história.
É mto triste que alguns pais achem que divórcio quer dizer tb divorciar-se de filhos.
Filho é pra sempre e o mínimo que se espera, é que um pai cuide e ame seu filho a vida toda.
Vc tem razão, a mágoa nos faz mal e atrasa nossa vida.

Anônimo said...

...e apesar diso, aqui estamos nós.
Somos quem somos também por causa disso.
É mais confortável pensar nos nós e sumiços que eu dava no "Piloco", na imagem do santo (qual??) que escondia no congelador ou no "flagelado" piando no quintal...rs

Simone said...

o problema é que as pessoas sempre olham o erro, por mais que você faça 99%, sempre olham o 1% errado

 
Pensamento Nosso - Wordpress Themes is proudly powered by WordPress and themed by Mukkamu Templates Novo Blogger