Conto: Sons



Ela estava na cozinha preparando um lanche quando escutou o som do sax. Olhou o relógio...19:00 horas...sorriu, ele não falhava!
Caminhou até a sala com o sanduíche na mão, jogou os sapatos longe e sentou no chão encostada na porta de entrada.
Mordeu o sanduíche e fechou os olhos...deixou que aquele som melodioso fosse penetrando em seu corpo, em sua alma, tomando conta dos seus sentidos.
Há dois meses seguia essa rotina, desde que ele mudara para o apartamento ao lado.
Não se conheciam, ou melhor, ela o tinha visto um dia. Estava na sacada do seu apartamento quando o viu entrando na portaria, com o saxofone na mão.
Um dia, saindo do elevador, viu uma revista na porta dele...espiou o nome: Guilherme.

Ela também não morava ali há muito tempo. O prédio era novo, desses empreendimentos feitos para pessoas solteiras e ainda havia muitos apartamentos vagos. No seu andar mesmo só tinha ela, até que dois meses atrás ele chegou.
No começo notou aquela movimentação de mudança, móveis entrando e tal. Depois, escutou o som...
Foi numa noite, quando havia chegado da agência de publicidade.
Lembrava-se de ter olhado no relógio da cozinha e visto a hora: 19:00 horas.
Ele tocava uma música antiga, de Nat King Cole e ela ficou parada, escutando, deixando o som invadi-la.

Outra noite encontrou um bilhete debaixo da porta: “Olá, sou seu novo vizinho. Toquei, mas como não havia ninguém, resolvi deixar um bilhete. Sou músico e todas as noites gosto de tocar um pouco em casa. Se te incomodar, pode me falar. Guilherme.”
Ficou olhando o bilhete...letra bonita, firme...sentiu um arrepio.
Deu risada: “acho que estou há muito tempo sozinha.”

Perdida em seus devaneios, só se deu conta de que a música havia parado quando escutou o barulho da fechadura do apartamento dele. Sem fazer barulho levantou-se e espiou no olho mágico. Como que sentindo, ele levantou os olhos e mirou sua porta.
Ela tapou a boca, com o coração aos pulos, como se ele pudesse ouvir alguma coisa.
Foi se afastando lentamente da porta e ficou parada esperando. Pouco depois escutou passos e o barulho do elevador chegando. Desabou no sofá nervosa...

E assim os dias foram passando...ela correndo para chegar em casa antes das sete da noite, só pra poder ouvi-lo tocar. Fechava os olhos e deixava a música entrar, ia sentindo tomando conta do seu corpo, como se fosse mãos a tocá-la. A sensação de erotismo era cada dia maior e isso a deixava envergonhada...”era um absurdo ficar excitada por causa de um cara que mal tinha visto, nunca havia falado.”

Um dia finalmente se encontraram no elevador. Sorriso cativante, olhos negros penetrantes, cabelos encaracolados, sempre caindo na testa e as mãos...hummmm, as mãos! Pareciam perfeitas, prontas para tirar sons de qualquer coisa que ele tocasse...inclusive dela mesma!
Conversaram pouco, ou melhor, ele falou; pois num estado anormal de mudez, ela ficou toda atrapalhada...ele deve ter achado que ela era estúpida.
Mas, ao menos conseguiu falar que a música não a incomodava, que gostava de ouvi-lo.
Com o passar do tempo foi se soltando, sendo menos inibida e já conseguia conversar quando se encontravam.
Ela não sabia se estava apaixonada por ele, ou pelo som que todas as noites invadia seu apartamento, seu corpo, sua alma...
Os dias em que ele se atrasava ou não tocava, sentia como se fosse uma viciada em estado de abstinência...seu corpo doía, seu coração acelerava, um absurdo total!

Um dia criou coragem, iria convidá-lo pra jantar.
Havia comprado uma garrafa de vinho tinto, feito um macarrão ao queijo (receita de sua mãe), espalhado essência de jasmim por todo o apartamento...
Sabia que ele já havia chegado, pois tinha escutado o barulho.
Foi até seu apartamento com as mãos suando...
Mais cedo pegou a revista da porta dele, era a desculpa que precisava pra ir vê-lo, entrega errada da revista.
Tocou a campainha...
O sorriso que havia colocado no rosto congelou ao ver que quem abria a porta era uma mulher linda, vestida apenas com um enorme camisão!
Os poucos segundo que se passaram na verdade pareceram horas...sua visão embaçou, o sorriso morreu num repuxar do rosto e sentiu que passou da coloração pálida ao roxo, na velocidade da luz!
A mulher levantou a sobrancelha e ficou olhando-a confusa.
Num ato de extremo esforço ela conseguiu se mover...balbuciou algo sobre a revista e estendeu-a, pedindo em seguida desculpas e voando para seu apartamento.
Se no mundo aquele dia tivesse um concurso da última das mulheres, ela com certeza ganharia...vindo de brinde o prêmio de estúpida!
“È óbvio que um cara como esse não estaria livre”.
Seu coração despedaçado foi pro lixo junto com o macarrão...

Se Deus fosse justo faria com que nunca mais desse de cara com ele...mas, contrariando suas preces, na manhã seguinte lá estava ela, ele e “a outra” parados esperando o elevador!
Ele com aquele sorriso lindo foi logo dizendo: “oi, você já conhece minha irmã, né?”
Com cara de “a idiota do ano”, falou:
“Irmã...claro, nos conhecemos ontem...”
A irmã olhou-a com uma expressão divertida e com aquele olhar cúmplice que só as mulheres percebem e entendem.
Na conversa que se seguiu, deixou escapar que gostava de Tom Jobim.

Chegou em casa péssima, a reunião com seu chefe havia sido horrorosa, sentia o começo de uma gripe e pra piorar, ainda estava com aquele sentimento de estar fazendo um papel ridículo, apaixonada por um cara que mal a olhava, ou pior ainda, apaixonada por um som...alguém na vida já havia se apaixonado por um som????
Lançou-se no sofá, sem vontade de tomar banho ou preparar algo para comer.
Fechou os olhos e de repente ouviu o som....coração começou a acelerar, um sorriso iniciando em seu rosto ao reconhecer a música...era Luiza, de Tom Jobim...ele estava tocando pra ela...estava tocando a música com seu nome!

Dessa vez não sentiu o erotismo tomando conta do seu corpo, mas sim um sentimento de bem querer, de carinho...estava precisando tanto disso!
Encolheu-se no sofá, fechou os olhos e lembrou da mãe cantarolando essa música quando ela era criança. Adormeceu ouvindo-o tocar...sabia que amanhã o encontro no elevador seria diferente...



imagem: www.imagem.ufrj.br

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

17 Comments:

Alê Quites said...

Passa no Namastê... Quero apresentar Minas a você.

Beijos*

Anônimo said...

Gostei desse conto.Muito bem estrurado.A poesia em musica é boa.

Mas Nat King Cole é otimo!

Interessante, as irmas são sempre confundidas (rsrsrs) isso acontecia comigo.Meu irmão é lindão (rsrsrs) e quando nos encontravamos ele adorava ir aos bares comigo.Ele adorava, ficar me dando beijo na cabeça e as vezes, ele fazia proposital, quando ele queria se fazer de interessante com a mulheres que interessava ele, (hahahahahaha) elas, acretitavam tudo, menos que ele beijava a cabeça da irmã dele.As risadas entre eu e ele eram fenomenais.

Gostei desse conto ele transporta os leitores pra fatos existentes no cotidiano...

Bjo

Margarete Bretone said...

Tadinha, fiquei imaginando "a cara de pata" que ela fez ao ver a irmã. Muito bom!

Bárbara Lemos said...

Olha, mas que surpresa! Belo conto encontrei por aqui. ADORO.

Querida, vi o convite, mas não tenho muito tato para escrever essas coisas. Vais ficar muito chateada se não o fizer?

Beijo meu.

Edna Federico said...

B, claro que não fico chateada, sorriso...sem problemas, ok? Continua nos seus contos que você é ótima nisso.
Beijo

Fabiola said...

menina que lindo!!!
tem um conto que a história é mais ou menos essa, onde a mulher se apaixona pela voz do mço!!!

Anne said...

Minha querida, posso parecer ridícula, mas fiquei emocionada com o fim, ele tocando a música pra ela...
Achei lindo o conto e adorei a forma como descreveu toda a situação. Deu até pena qdo ela deu de cara com a irmã dele...
Isso acontece sempre comigo e o meu primo, estamos sempre juntos, crescemos juntos, mas mta gente acha que somos namorados. Ele costuma dizer que Deus não foi justo em faze-lo meu primo...kakakaka. Realmente, quando as pessoas nos amam, nos veem ainda melhor do que somos.
Bjos, Edna, adorei vir aqui!

Edna Federico said...

Ai, ai, ai...riso...olha gente, juro que não peguei o conto de nenhum lugar, a não ser da minha mente...não vão me acusar de plágio, hein...riso
Brincadeira, fico feliz que tenham gostado.
Beijos

Anônimo said...

Ao sopro da sugestão não há vinho que permaneça por muito tempo na garrafa.
Cadinho RoCo

Carmim said...

Edna, a tua imaginação hoje se superou. Este conto é uma das coisas mais lindas que já li nos últimos tempos.
Incrível como a nossa mente tem a capacidade de nos transportar para longe em momentos assim.
Se me pudesses ver, enxergarias um sorriso aberto, e um olhar de sincero elogio ao que li aqui.
Parabéns.

Beijo.

Edna Federico said...

Ô minha florzinha portuguesa, muito obrigada...beijo!

Roberto Camara Jr. said...

A recíproca é verdadeira!!!
Grande beijo,

BABI SOLER said...

Como sempre muito bom.
Beijo!

MamaNunes said...

Muuuito bom!
Um conto que daria um belo curta hein?
Mandou bem Edna!
bjk :o)

Renato said...

Conto com trilha sonoro! Que delicia! Depois vc fica com vergonha de mostrar o que escreve...

Anônimo said...

Fofs...
que coisa mais linda...
eu fiquei emocionada...pra ser sincera ate rolou lagriminha... que delicia...
Sua mente é algo que surpreende sempre!!!

Tell me more....

CL said...

adoro o Tom...Foi um gigante...e seu conto, aff


ta perfeito!

 
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