Crônica: Clarice Lispector



OS ESPELHOS

"O que é um espelho?
Não existe a palavra espelho - só espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. - Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos?
Não são preciso muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente ad infinitum, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos, reflexos dessa dura água.

- O que é um espelho? Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. - Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre sem parar: pois espelho é o espaço mais profundo que existe.- E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. De onde também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho.- A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo, não existe espelho quadrangular ou circular: um pedaço mínimo é sempre o espelho todo: tira-se a sua moldura e ele cresce assim como água se derrama.

- O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestí­gio da própria imagem - então percebeu o seu mistério. Para isso há-de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha.

Devo ter precisado de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com a própria imagem, pois espelho que eu me vejo sou eu, mas espelho vazio é que é espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar num quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: Vi o espelho propriamente dito.E descobri os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro alto bloco de gelo.

Em outro instante, este muito raro - e é preciso ficar de espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar esse instante - nesse instante consegui surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Depois, apenas com preto e branco, recapturei sua luminosidade arco-irisada e trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturei também, num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difí­ceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água.

Clarice Lispector - Para não esquecer.

Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

imagem: www.banheiroselavabos.com.br

terça-feira, 31 de julho de 2007

15 Comments:

Whispers said...

Olá linda!!
O espelho lindo tema, me deixou a pensar nas tuas palavras

Muitas vezes corremos o ricos de não ver bem as nossas imagens no espelho da vida, pq esta tão sujo o espelho da alma que acabamos por precisar da mão de alguém para dar uma ajuda e nos fazer ver para além do que nossos olhos vêem refletido.
Venho te desejar uma semana de paz e felicidade
beijos em sua alma
Whispers

Bina Goldrajch said...

Muito bom!
Adoro crônicas, e mais ainda, adoro Clarice!

Ela sempre consegue ser perfeita. Tenho vários livros dela aqui em casa.
rs

Abraços! Gostei do blog.

*Carol Carolina* said...

Clarice, amo tudo que ela possue escrito.
ngm melhor do que ela para dizer oiq realmente nos bate aqui dentro.

linda cronica.
"como se recriasse a violenta aus�ncia de gosto da �gua."
forte.intenso.denso.

bjo

Pensamentos Ocultos said...

Um Post Giro e diferente ! Continue assim !

Um ESPELHO, o que será ? Será que alguém sabe ?

Hum(..)

Beijinho

Vanda said...

Espelho por vezes tão necessario e ao mesmo tempo tão enganador!

beijos e boa semana

Nil Borba said...

Uau!!!

Admirar Clarice é tão fácil, pois escreve com tanta propriedade que será dificil dizermos algo contrário; o dicil é comentar um texto assim, tão intrínseco e sábio.
Preciso me olhar vez ou outro no espelho de minha casa.

Beijos e bom dia Edna

c said...

Clarice...
lindas palavras sempre.

Marcelo said...

Interessante notar que, quando não estamos bem conosco mesmos, é bem difícil nos encararmos no espelho, não?
Talvez o espelho tenha a mágica faculdade de refletir nosso estado de espírito.
Gosto muito de Clarice.
Bem lembrado, Edna.


Beijos, mocinha.

Heliarly F. Rios said...

Tudo dependo do nosso ponto de vista!

Se um dia eu pudesse saber o que se passa na ''cabeça'' da queles mosquitinhos que rodam em torno das lâmpadas com certeza ele de me diria que a lâmpada é Deus!

Yara Voi said...

Amiga....
Passei aqui pra te deixar um beijão e desejar uma ótima semaninha.
Eu AMO seu blog, adoro ler as coisas que você publica aqui.
Beijos

Menáge à Trois said...

Quando entrei no museu da língua e vi Clarice, ali em palavras gigantescas que refletiam sobre si mesmas quase enlouqueci de tanta alegria. Ler um texto dela no seu blog é uma maravilha. Obrigada, por maus esse momento bom.


Como ninguém

Renato said...

Como é difícil por vezes se encarar diante do espelho..

Unknown said...

Acho até q vc leu meus pensamentos. Há dias que penso em fazer um post dedicado à Clarice. Queria ser Clarice na próxima encarnação. Não posso mais viver minha vida sem ler Clarice!

Bjs.

Jac C. said...

Espelho é meu amigo sincero e por vezes chato... um dia me elogia e diz que tô linda... outro dia me acaba e põe verruga de bruxa no meu nariz... hehehe.
Demoro, mas qdo chego capricho na leitura...rs
Seu blog é jóia!
Bjs e obrigada por sua gratuita presença no "Asas".

Fabi said...

Clarice é bárbara...

 
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